Que
critérios adotar na hora de escolher uma língua estrangeira? Primeiro, o de
ordem prática, naturalmente, ou seja, a importância do idioma para o desenvolvimento
profissional e pessoal. Em seguida, vem o
critério volitivo, associado ao desejo de assimilar determinada cultura, ainda
que isso não represente um ganho financeiro – ou seja, a satisfação pura e
simples. A segunda opção é a mais difícil e implica em muitos riscos em uma
época dominada pelos imperativos econômicos.
A
resposta mais óbvia para o primeiro critério em geral é o inglês, seguido do
espanhol. Mas, para quem trabalha em negócios com os russos, por exemplo, pode
ser o russo. Para o segundo, a escolha é livre e não cabe estabelecer
discussões a respeito. Se alguém deseja utilizar o tempo livre para aprender
tupi, qual é o problema? Quando se pode realizar uma combinação dos dois
fatores, melhor ainda. E é isso que acaba geralmente acontecendo: aprende-se um
idioma e ganha-se uma cultura, da qual se aprende a gostar.
Antiga
língua da diplomacia e das artes, o francês mantém um status elevado ao redor
do mundo quando se trata de uma escolha baseada na cultura e nas qualidades
intrínsecas do idioma. Mesmo no Reino Unido e nos Estados Unidos a língua de
Asterix conserva um grande prestígio. E não se trata apenas do idioma e da
cultura, o jeito franciliano de pensar e ver o mundo oferece uma contribuição
nada desprezível em meio à maré de globalização e estandardização.
Há
quem seja tocado pela nostalgia: grande parte da cultura clássica vem da
França. O Brasil em particular foi influenciado pela cultura francesa em várias
épocas e em diferentes níveis, a começar pelas missões artísticas que Dom João
Sexto mandou vir da Europa para explorar e estudar o imenso território no
início do século XVIII. A contribuição do parisiense Jean-Baptiste Debret, por
exemplo, determinou a maneira como vemos o Brasil antigo e tornou-se um marco
de nossa identidade. Ele fez parte da primeira missão artística de 1817, foi o
responsável pela criação de um centro de artes e ofícios no Rio de Janeiro (que
mais tarde se tornou a nossa primeira academia de belas artes) e sua produção
aquarelística com cenas e personagens do Brasil antigo estão em todos os compêndios
de história do Brasil. Até mesmo as formas e as cores de nossa bandeira foram
retiradas de sua obra. Para completar, o lema Ordem e Progresso foi tomado de empréstimo
de um dos princípios da filosofia positivista do também francês Auguste Comte, o
papa do pensamento “progressista” da época. Foi nos círculos positivistas igualmente
que se orquestrou o golpe militar que estabeleceu a Proclamação da República.
Entre
os modernistas de 1922, a influência francesa é clara, vide a proximidade entre
Blaise Cendrars e Mário e Oswald de Andrade*. Mais tarde, a criação da pioneira
faculdade de ciências humanas da USP, que se tornaria o modelo para as outras a
serem criadas em outras regiões, trouxe as impressões digitais de intelectuais
como Lévi-Strauss. O Cinema Novo nos anos 1960 se desenvolveu em paralelo com a
Nouvelle Vague francesa e o cinema de autor. Enfim, em áreas como a alta
costura e a gastronomia a presença francesa continua a ser marcante.
Este
ínfimo resumo serve para dar uma ideia da importância da cultura francesa entre
nós, uma influência que tem sido negligenciada nas últimas décadas devido à
onipresença do inglês e à pressão (imperialista) norte-americana.
Outros
se deixam seduzir pelo charme da língua e a sólida tradição literária que lhe
dá ancoragem. Este é um mar de delícias que nosso barquinho pode apenas roçar da
orla. Admito opiniões divergentes e poderei inclusive surpreender alguns
franceses ao afirmar que, dentre os idiomas que conheço, o francês é o melhor
para a literatura. Ler uma boa obra em francês é uma fruição estética de
primeira ordem e um refinamento que não tem equivalente nas línguas de
Shakespeare, Cervantes e Machado de Assis. Por esse único ponto vale a pena
aprender francês. Serão vários anos de sacrifício, mas ao chegar ao nível de
ler Mallarmé ou Maupassant no original sem titubear você receberá a recompensa.
Ainda
que disponha de uma ortografia e gramática relativamente difíceis, o francês é
uma língua latina. Isso significa uma maior facilidade na aquisição de
vocabulário quando comparada ao inglês, por exemplo. Outra vantagem: para quem
busca um antídoto para o inglês, o francês é perfeito. Ele tem muito menos
contraindicações, desce mais suave, não dá a azia que acomete um bom número de
estudantes de inglês, sobretudo aqueles que começam a aprender o idioma mais
tarde. Onde o inglês é duro, o francês é macio, onde o inglês é caótico, o
francês é lógico, onde um é mainstream, o outro é alternatif.
Outro
fator digno de nota: o francês é um idioma formador. Ajuda a desenvolver o
sentido claro do enunciado, a organizar as ideias (seu lado cartesiano), a
distinguir níveis de etiqueta, a escolher o mot juste (a palavra correta) para
completar uma frase.
Em
meu trabalho com esse idioma, procuro ressaltar essas características positivas
para estimular os alunos. Devo dizer que tenho alcançado uma faixa de sucesso
acima de 90% ao longo de trinta anos. E, embora eu não tenha qualquer
preferência por um dos idiomas que me propiciam o ganha-pão** em termos de
trabalho pedagógico, imagino que minha identificação com a língua e a cultura
francesas tornou-se uma marca distintiva de minha atividade de professor.
*
Para quem tiver interesse e puder ler em francês, veja meu post “TU ES PLUS
BELLE QUE LE CIEL ET LA MER” em abraolacerda.blogspot.com.br
**
Sou professor e tradutor em quatro idiomas: inglês, francês, espanhol e
português.
©
Abrão Brito Lacerda
22 05 18